3 de setembro de 2021

Crônica - A Criança

Viver nunca foi algo fácil na cabeça daquela criança. Já cedo, era incompreensível entender a capacidade dos outros infantes de galopar facilmente descalço pelas ruas, enquanto que para ele, a gravidade pesava um pouco mais. 

Ele se via diferente num mundo de iguais, mas não foi isso que ouvira de alguns médicos.

- Como era mesmo aquela palavra estranha? Ahhh... Obeso! Certeza que era obeso do que chamavam. Era uma criança obesa! 

Demorou para entender que obesidade não era sua culpa e custou a penetrar no seu encéfalo, a ideia de uma família pobre ter uma criança gorda no seio do seu lar.

-Como assim Deus? Tá de brincadeira? Como é possível? Acho que foi a primeira vez que questionou Deus!

Ainda assim "não pode esmurecer" - palavras de sua mãe. "Te levanta menino!" "Acorda pra vida!" "Te ajeita!". E a maior lição recebida: "se chegar em casa apanhado, em casa apanha de novo!". E vamos a luta! "Depois da luta, pode brincar."

Brincar era quase impossível. Enquanto as outras crianças se desafiavam fazendo coisas incríveis, incrível para ele era correr! Pouca coisa para alguns, mas para aquela criança a sensação era fantástica; pena que durava pouco...

Ainda assim ele tentava, sob os gritos de sua mãe, ele tentava. Tentava correr, tentava brincar... Tentava tomar jeito. Muitas vezes tentava engolir o choro, principalmente quando não sentia aquela coisa estranha...

-Como era mesmo o nome daquela coisa? Ahhhh... Dor. Estou certo que é dor. 

Era estranho quando não sentia dor. Não pela dor em si, que nem era tão ruim, mas por que, era através da dor que podia ter raros contatos físicos com outras crianças. Descobriu que bater era verbo e dor também.

-Ué?! Dor também é verbo? 

 A pró Rita explicava na sala: "Verbo é ação, então dor também é verbo!". 

-Então é isso. Dor é verbo. Verbo é algo que faz sentido! 

E as crianças agiam. 

-Mesmo assim, o contato era tão bom! Mesmo se vier acompanhado com dor, vale a pena! - o mundo infantil é malévolo.

E assim, sob os gritos de sua mãe e sob os ensinamentos da pró, ia tomando jeito. Um dia, sua mãe ensinou sobre sonhos: "Estudar, para ganhar dinheiro e ajudar sua mãe!". 

Então sonhar era isso? Tem graça não!

E ensinou sobre respeito: "Falte com respeito e eu quebro sua boca!" 

-Mãe tem um jeito estranho de demonstrar amor... Hey mãe, o que é amor?

"Amor é aquilo que dura muito tempo" 

-Mas isso não se chama fome? Não, não... Se mãe diz que amor é tempo, então é tempo! Amor é tempo!

-E o que é o tempo? 

"Tempo é aquilo que passa e a gente não vê".

Demorou um tempo para entender essa parte da vida. Até que um dia, a criança abriu os olhos e pôde perceber que não era mais criança, nem menino: era homem!

-Então era sobre isso que minha mãe me falava?

 Falava também é verbo e verbo tem tempo; hoje, tempo é uma coisa que a criança não tem. Então ela abre os olhos, levanta da cama... Tem que sair. Sair para... 

-Como é mesmo o nome daquele lugar? Trabalho? É... Sair para o trabalho.

A criança, crescida, saiu para o trabalho, sem tempo. Mas não antes de lembrar que sua mãe esqueceu de ensinar uma parte importante da vida: a vida não dura para sempre... 

A criança acordou adulta, sem mãe. E lembrou do dia em que a pró Rita ensinou sobre verbo...


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