1 de abril de 2013

Canções para viver mais - por Marcelo Ferla

Matéria publicada na revista Rolling Stone n°18 - Março de 2008.



O quarto de Vinícius fica no meio do corredor, à esquerda. É lá que estão o violão, as partituras, a coleção refinada de CDs: Beatles, Radiohead, R.E.M., Flaming Lips, Tom Waits, Jeff Buckley, Strokes, Air, Beastie Boys, Billie Holliday, Cateano Veloso, Vitor Ramil, João Gilberto. As fileiras são desordenadas e alguns discos cobrem os demais, mas nem preciso revirá-los para ver melhor. Já deu para entender as referências dele. Ao lado da cama de solteiro, coberta por uma colcha do Grêmio, estão um pôster do vocalista do Radiohead, Thom Yorke, o mais brilhante artista da música pop do século 21, e outro do grupo escocês de pós-rock Mogwai, autografado. Na cabeceira da cama repousam, sobre um travesseiro, o terço da primeira comunhão e um CD que estampa na capa a foto de Vinícius - bonito e concentrado, com headphones e agasalho esportivo vermelho abotoado até se formar uma gola alta. "Yoñlu" é o que está grafado na capa do disquinho digital. O estúdio caseiro onde as 23 faixas do CD foram gravadas, entre 2004 e 2006, fica no meio do mesmo corredor, à direita. Abriga o aparelho de som do garoto, mais discos, uma guitarra, um teclado e o seu computador, um PC onde os sons foram registrados com um aplicativo básico de áudio, o Cool Edit Pro, e um microfone.

Os dois cômodos mais freqüentados por Vinícius Gageiro Marques, filho único da professora universitária e psicanalista Ana Maria Gageiro, e segundo do professor universitário Luiz Marques (Fernanda é do primeiro casamento), permanecem arrumados como se ele fosse chegar a qualquer momento do tradicional Colégio Rosário, onde cursava o ensino médio, para navegar na internet e fazer música, seu passatempo predileto. A rotina dele também englobava as visitas ao analista, ao cinema, às aulas de teclado e guitarrra e, sazonalmente, a uma academia de ginástica. "Manter tudo como era faz parte da elaboração da perda", explica Luiz Marques, que me recebeu em uma tarde incandescente do verão sulista, no final de dezembro de 2007, para falar do álbum póstumo de Yoñlu, assinatura virtual (de significado ignorado) de Vinícius, que abreviou a própria vida na tarde de 26 de julho de 2006, 36 dias antes de completar 17 anos, ali mesmo, no apartamento do bairro São Geraldo, zona norte de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul.

Naquele dia, o garoto permaneceu on-line até lacrar o banheiro, onde morreu por intoxicação de monóxido de carbono. Seus últimos momentos foram acompanhados por internautas com quem ele se comunicava em um fórum virtual de suicídio. Alguns inclusive deram conselhos de como agir para executar o plano preconcebido - às 14h18, Yoñlu relatou que tinha duas grelhas queimando no banheiro, postou uma foto e perguntou: "Alguém, por favor, pode dizer quando posso entrar no banheiro e deitar?"; às 14h42, um internauta pergunta: "Como você está se virando? Espero que você consiga. Talvez você vá voltar tossindo"; às 14h44, Yoñlu retorna ao computador e reclama do calor: "O que eu devo vestir para tornar isso mais suportável? Pelo amor de Deus, alguém por favor me ajude"; às 15h11, um internauta alerta que a emissão do monóxido de carbono pode afetar os vizinhos; algumas horas depois, alguém escreve que o suicídio deve ter sido consumado, pois ele não entrou mais em contato.